Seguem abaixo textos compilados sobre a escritora Carolina de Jesus, uma pioneira na literatura afro-brasileira.
Carolina Maria de Jesus (Sacramento, 14 de março de 1914 — São Paulo, 13 de
fevereiro de 1977) foi uma escritora brasileira,
conhecida por seu livro Quarto de
Despejo: Diário de uma Faveladapublicado em 1960.
Carolina de Jesus é
considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil. A
autora viveu boa parte de sua vida na favela do
Canindé, na zona norte de São Paulo, sustentando a si mesma e seus
três filhos como catadora de papéis. Em
1958 tem seu diário publicado sob o nome Quarto de Despejo, com
auxílio do jornalista Audálio
Dantas. O livro fez um enorme sucesso e chegou a ser traduzido para
quatorze línguas.
Carolina de Jesus era também
compositora e poetisa. Sua obra permanece objeto de diversos
estudos, tanto no Brasil quanto no exterior.
Fernando
Bandini: Quarto de despejo
5/10/2018
Negra
num país racista; mulher sob uma ordem patriarcal; pobre em sociedade voltada
para o consumo desenfreado. Quais as chances de alguém assim realizar algum
projeto pessoal? Mínimas ou nulas. Pois há quase 60 anos, uma brasileira
chamada Carolina Maria de Jesus, catadora de papel e moradora da favela do
Canindé, em São Paulo, lançou seu livro “Quarto de despejo – diário de uma
favelada”, e alcançou sucesso extraordinário.
Por Fernando Bandini Do JJ
Naquele distante 1960, seu livro foi o mais vendido
do ano. No Brasil, alcançou patamar de mais de 100 mil exemplares vendidos,
rendeu traduções em 13 línguas e edições em dezenas de
países. Semialfabetizada (ela cursou até o segundo ano primário numa
escola de Sacramento, sua cidade natal, em Minas Gerais), apaixonada por
livros, Carolina acalentava desde pequena o sonho de ser escritora. Escrevia em
cadernos encontrados no lixo. Produziu poemas, letras para canções e romances,
anotou provérbios e elaborou um diário com apontamentos de seu cotidiano.
Mãe solteira, com três filhos para criar, Carolina
relata a vida de quem tirava o sustento do lixo. Saindo das margens do Tietê,
perto do estádio da Portuguesa, ela percorria as regiões do Bom Retiro, Luz e o
Centro atrás de papéis e metais para vender em ferros-velhos e conseguir
alimentar sua família. Chegou ao Canindé em 1947 e de lá saiu em 1960, para uma
“casa de alvenaria”, outro sonho registrado em diversas passagens do diário.
Foi “descoberta” pelo então jovem repórter Audálio
Dantas, cuja pauta era as submoradias que cresciam ao lado do rio. Dantas
editou o diário, mantendo a grafia e pontuação originais da autora e o livro
foi publicado, com sucesso. Lírico e contundente, o texto de Carolina mostra
uma realidade que tantos teimam não ver.
Carolina transformou-se na cinderela que deixou o
lixão da margem do Tietê (ao lado da favela, havia um aterro clandestino em que
empresas despejavam resíduos) para morar em Santana. As vendas do livro tiraram
Carolina e os filhos da miséria, levaram-na para o centro do palco midiático.
E assim como apareceu, despertando a curiosidade de
tantos, foi esquecida com a mesma rapidez. Morreu isolada, em 1977, num sítio
em Parelheiros. Seu “Quarto de despejo” (há edição recente, da Ática) continua
atual. A favela do Canindé não existe mais, clonada em milhares de outros
núcleos de submoradias espalhados pelo país.
Sobre Carolina e sua obra
Carolina Maria de Jesus representa, no contexto da produção
literária brasileira, uma convergência valiosa de condições de
‘impossibilidades’ para uma carreira literária: é uma mulher negra,
semialfabetizada, favelada, mãe solteira e, acima de tudo, dona de um gênio
forte e inflexível ao ponto de frustrar os projetos de moldá-la ao gosto
público. A sua obra não se resume aos diários publicados, às versões
organizadas pelo jornalista Audálio Dantas: Quarto de Despejo – o diário de uma
favelada (1960), e Casa de Alvenaria, diário de uma ex-favelada (1961). Além
desses dois títulos, que projetaram o nome de Carolina Maria de Jesus dentro e
fora do Brasil em apenas dois anos, a escritora publicou por sua conta Pedaços
da Fome e Provérbios (1963). Após mais de uma década no ostracismo, seu nome
reaparece na capa de um livro, Diário de Bitita (1986), após a morte da
escritora. Antes de ser revelada ao público, Carolina já havia tentado chamar a
atenção de editores para os seus escritos: poemas, crônicas, contos, máximas e
romance. Seu diário, por outro lado, chamou a atenção do público leitor da
época por permitir uma visão "de baixo" das condições sociais do
Brasil em plena década do desenvolvimentismo. Esse público leitor era também
responsável pelas manifestações culturais engajadas, marcadamente
populista. Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, seu diário teria despontado
no cenário nacional nas agitações políticas que marcaram
os chamados “anos dourados”, iniciados no governo de JK. No quadro da
contracultura cabiam tipos sociais que representassem as contradições nacionais.
Nesse conjunto, a experiência de mulher batalhadora que sobrevivia graças ao
lixo da cidade valia como argumento de interesse social. Foi assim que Carolina
se transformou em representante de temas que empolgavam o debate político da
esquerda e da direita. (Meihy, 2010, p.61).
A partir do processo de
abertura política promovido ainda pelo governo militar, em finais dos anos 1970
e início da década de 80, testemunhou-se uma virada significativa nos rumos da
produção literária nacional. Para Flora Süssekind, esse momento histórico
engendrou uma “prosa com dicção autobiográfica que dominou o panorama literário
brasileiro de fins dos anos 70 e início da década de 80” (Süssekind, 2004,
p.93-4). Em princípio, eram os relatos de ex presos políticos e exilados o que
caracterizava a nova onda do retorno autobiográfico. Essa dicção, contudo,
chega a contaminar também a produção literária ficcional e, mais adiante, vem
possibilitar a abrangência de outras experiências de vida – estas, dispostas a
privilegiar a voz subalterna, a experiência de vida das minorias e da vida da
periferia. Nesse sentido, era pertinente um olhar menos radical em relação à
produção literária de Carolina de Jesus, o que veio a acontecer na década
seguinte.
Na década de 1990, através da pesquisa dos professores José Carlos
Sebe Bom Meihy, da Universidade de São Paulo, e do professor Robert M. Levine,
da Universidade de Miami, que resultou no livro Cinderela Negra, a saga de
Carolina Maria de Jesus, foi possível não somente reintroduzir o nome da
escritora nos círculos de pesquisas literárias, mas também recuperar parte de
seu arquivo contendo manuscritos dos diários publicados e mais de cinco mil
folhas de textos inéditos. Esse material, tratado e microfilmado, encontra-se
depositado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na Biblioteca do
Congresso, em Washington D. C.
Em uma entrevista, por ocasião do lançamento do filme Cinco vezes
favela, agora por nós mesmos, o cineasta Cacá Diegues se preocupa em esclarecer
que sua participação no projeto – um filme composto por sete histórias
diferentes, todas escritas, dirigidas e estreladas por jovens moradores de
favelas - foi apenas a de “um produtor que apostou em um projeto não por
caridade, mas por acreditar na sua competência artística, comercial e cultural”
(Apud Ventura, 2010, p.07). Emblemático posicionamento do diretor que, nos anos
1960, fez parte da intelectualidade encarregada de “dar voz” ao oprimido e de
divulgar a realidade da periferia. Atualmente, como o artigo de Zuenir Ventura
de onde foi retirada essa afirmação aponta, há uma invasão do centro:
a favela está procurando ser o seu próprio porta-voz. Não está
querendo mais ser vista apenas pelo olhar exterior; quer ser protagonista e
autor de sua história. É um movimento de dentro para fora, bem diferente da
atitude que movia os intelectuais de esquerda dos anos 60 que, generosos mas
paternalistas, subiam o morro atraídos pelo tema e “levando” cultura. (loc.
cit.).
A partir de 1958, quando começaram a ser publicados em jornais
paulistas trechos de seu diário, como preparação para a versão em livro
que surgiria em 1960, Carolina Maria de Jesus se encontrava em situação
ambígua: se, por um lado, devia sua exposição à interferência do jornalista
Audálio Dantas e, dessa forma, estaria sendo “mediada” por ele, por outro
recusava a mediação e acreditava poder instaurar um discurso seu e somente seu,
dentro do ambiente literário e cultural no qual conquistara algum espaço. Essa
ambiguidade favorece uma compreensão da obra de Carolina como portadora
de uma potência que resistiu aos imperativos conjunturais, apesar de ter sabido
tirar proveito direta ou indiretamente deles. Sua literatura produzida “de
dentro da favela” – e talvez uma das primeiras obras com tal característica –
não pode ser considerada essencialmente periférica, uma vez que uma leitura
mais atenta de seu diário mostra sua convicção de pertencer ao mundo literário
por conta de seu talento e não por concessão de uma tendência ideológica
qualquer. Descrever a vida na favela, tarefa à qual seu diário se dedica, não
resume a totalidade da obra literária de Carolina Maria Jesus. O imaginário
presente em seus contos, romances e peças teatrais compõe-se de diversas
realidades e de diversas imaginações (trabalhadores, serviçais, homens e
mulheres elegantes e ricos, palácios e muito luxo), resultando em uma
literatura para a qual o rótulo de “periférica” somente reduziria seu
valor e perpetuaria uma atitude complacente em relação ao seu exame através de
uma perspectiva estética.
https://www.vidaporescrito.com/about1-ctqi
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